Alguns sites citam que, numa novela da emissora de maior audiência no
Brasil, um socorrista colocou o colar cervical "de cabeça para baixo". E a
reação a um programa do governo relançou este fenômeno, com vídeos em que
socorristas identificados como "médicos Cubanos" colocam um colar cervical
fora de posição. Além do fato que nada nesses vídeos novos demonstra que
os socorristas eram realmente médicos ou Cubanos, até agora nada explica
por que esse erro acontece.
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Considerando o que é um colar cervical, é preciso admitir que
trata-se de um equipamento de uma simplicidade desconcertante, e que
sua colocação é fácil. Que uma pessoa não saiba fazer uma operação
de coração a peito aberto ou a retirada de uma parte de um pulmão,
ok! É fácil de entender, porque uma operação assim é complicada. Mas
colocar um colar cervical é simples demais!
Além disso, as pessoas filmadas colocando o colar invertido têm,
todas, sem nenhuma exceção, a capacidade física e intelectual para
colocá-lo corretamente.
E isso implica que nós, diante da tela, tão seguros de nossa
competência, estamos sem dúvida sujeitos a colocar o colar invertido
um dia ou outro... Então, é preciso continuar a procurar, para
entender o porquê deste erro. |
A formação
Podemos imaginar que essas pessoas foram mal formadas. Mas o problema é
que quase todo o pessoal da área de Saúde, inclusive o SAMU, passam por
uma formação equivalente. Se nós temos alguns vídeos mostrando um erro de
posicionamento, deduzimos logicamente que o nível global é ruim e que na
tela está a parte visível do problema. Resumindo:
o colar em si mesmo é um equipamento muito simples
a colocação também é muito simples
enfermeiras, enfermeiros, médicos, etc... são pessoas
que têm todas, globalmente, o mesmo nível intelectual e de capacidade
física
a formação é globalmente idêntica ou, pelo menos, se há
diferenças elas são insignificantes e não têm impacto no caso de um
equipamento e de uma técnica tão simples
Nossa dedução lógica é, ao mesmo tempo, desconcertante: nós teríamos no
nosso país pessoas do mesmo nível intelectual, com a mesma formação, que
arriscam todos, um dia ou outro, de colocar o colar cervical "de cabeça
para baixo". Simplesmente, elas não são todas filmadas, e a chegada do
Facebook ou Youtube não muda coisa nenhuma quanto à posição errada: essas
mídias "mostram", só isso, e nos levam a descobrir um problema que já
existia.
Você, leitor deste artigo, enfermeiro(a), trabalhando no SAMU, por
exemplo, não é mais bobo nem mais inteligente do que o socorrista no
vídeo. Mesma formação, mesmo material... Ou seja: mesmo risco. É motivo
para começar a se fazer algumas perguntas, não é mesmo?
Risco ou hábito?
Vamos começar diferenciando "risco de colocar o colar invertido" e
"hábito de colocar o colar invertido". Sejamos lógicos: cada pessoa
formada, num momento ou outro de sua formação, colocou o colar diante do
formador. E o formador avaliou o que o aluno fazia, então podemos supor
que todas as pessoas filmadas colocando o colar de forma incorreta já o
colocaram corretamente em curso. Difícil imagimar que um formador aprove
um aluno que coloca o colar como nós vemos nos vídeos. Em outras palavras,
não estamos diante de socorristas que colocam SEMPRE o colar
incorretamente, mas sim em presença de socorristas que, nessa vez, diante
da câmera, colocaram o colar invertido.
Isso significa que existe uma diferença entre a formação e o que aconteceu
na realidade. Um detalhe, um ponto preciso foi esquecido em formação e
aconteceu no socorro, levando a este posicionamento errado.
O colar é simples ou não?
Vamos observar com atenção um colar. Ele está disponível visualmente em 3
formas.
Primeiro caso: estendido, ou seja, desdobrado, aberto e sem fixar a parte
da frente.
Nesse caso, é fácil ver que o colar é assimétrico. Na Europa, geralmente é
assim que ele é arrumado nos veículos: estendido, numa sacola comprida. No
Brasil, os Sapadores-Bombeiros os arrumam assim também. Então, o
Sapador-Bombeiro deve tirar o colar da sacola e montá-lo. Pode-se dizer
que a montagem exige alguns segundos, que montar e desmontar danifica mais
rápido os colares... Mas com colares de qualidade
razoável, isso não é problema, arrumá-los estendidos é mais fácil... mas o
principal é que o socorrista vê o colar nesta forma assimétrica.
Segundo caso: montado mas não fechado. Visualmente, a assimetria do colar
diminui seriamente. O colar ocupa mais espaço do que se estivesse
totalmente aberto, não dá mais para arrumá-lo numa sacola e, como ele está
aberto, o velcro se suja. É uma solução muito ruim.
Terceiro caso: fechado. É o que nós encontramos geralmente nas
ambulâncias Brasileiras. Para pegá-los mais rapidamente, os
socorristas montam e fecham os colares ao redor da barra no alto do
salão do paciente. O colar fica num local potencialmente
contaminado. Mas o principal é que, visualmente, ele se torna
simétrico, mesmo não sendo. Observando colares de várias
marcas, em geral é a mesma coisa: quando estão fechados, fica muito
mais difícil determinar qual é a parte de baixo e a de cima.
O modo de arrumação do colar então é um ponto que vai agravar a situação.
Tanto é que nos vídeos com a colocação incorreta quase sempre é um outro
socorrista que entrega o colar, fechado, a quem vai colocá-lo. O
socorrista que vai colocar o colar recebe um objeto que visualmente parece
simétrico, mas que de fato não é. Além disso, o fato de quem coloca o
colar vê-lo de muito perto dificulta ainda mais visualizar a diferença. |
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O tamanho do colar
Se a colocação do colar é um ponto essencial, notemos principalmente que
a medida do tamanho é um pré-requisito. Existem de fato vários tamanhos de
colares e convém escolher o que melhor se adapta. Ora, aqui também, a moda
no jeito de arrumar o colar tem um impacto. Se os colares são
pré-montados, a gente não mede: A gente pega o primeiro que chega na mão,
testa e, se não serve, a gente pega um outro.
O modo de fazer então é "escolha, colocação, teste, escolha, colocação,
teste". Ao contrário, quem arruma seus colares esticados, num saco,
entende rapidamente que precisa medir antes de colocar o colar, senão vai
perder muito tempo. De fato, ele trabalha diferentemente: "medida,
escolha, montagem, colocação".
Este modo de fazer parece mais longo, mas tem duas vantagens:
A colocação será feita apenas uma vez, com o tamanho certo. Por sua vez, o
modo "escolher, colocar, testar" leva a colocar parcialmente um colar,
retirá-lo, pegar outro, até achar o correto, aumentando os riscos de
movimento intempestivo da vítima, que frequentemente não é bem mantida.
Tanto é que, nos vídeos com a colocação invertida, há frequentemente
tentativa de colocar um colar, retirada deste e colocação de um outro. De
fato, o socorrista percebe que há um problema, mas pensa (em alguns
micro-segundos) que é o tamanho que está errado. Porque, se a gente olhar
bem, o socorrista não mede. É lógico: o primeiro colar é apresentado,
fechado, e quando ele não é bem colocado, alguém lhe passa imediatamente
um segundo colar. De quebra, isso pode contaminar os colares que não serão
usados! A impossibilidade de colocar o colar é associada, de forma lógica
e falsa, a um problema de tamanho, porque:
- o socorrista não fez a medida
- alguém lhe dá um outro colar
Pior, já que a gente pensa que o primeiro não serviu por causa do
tamanho, a gente pega o segundo mas evita pedir ainda um outro. De fato, é
o que acontece no nosso dia a dia: nós podemos recusar a primeira
proposta, mas temos mais dificuldade para recusar a segunda.
A outra vantagem de arrumar os colares desmontados é que a medida leva
alguns segundos, bem como a retirada da sacola e a montagem. Isso permite
acalmar-se um pouco mais, ajudando a distinguir perfeitamente o sentido do
colar.
O sentido de colocação
Mesmo que esses micro-detalhes de ergonomia não expliquem totalmente a
colocação incorreta, dá para ver que eles aumentam progressivamente o
risco de errar.
O ponto sobre o qual nós insistimos há algumas linhas é que o colar não é
simétrico, mas parece ser. Ora, uma pessoa é simétrica: seu perfil direito
é idêntico a seu perfil esquerdo (em todo caso, no assunto que tratamos
neste artigo, ele é suficientemente idêntico para ser considerado como
simétrico). Coloque-se ao lado de uma vítima deitada. De que lado está a
cabeça dela? A resposta é simples: depende!
A cabeça da vítima pode estar à nossa direita ou à nossa esquerda.
Ora, quando você foi formado para colocar o colar cervical, na maioria dos
casos a vítima foi apresentada a você com a cabeça à sua esquerda. O
gesto, que você viu o formador fazer e que você também fez, sempre foi o
mesmo: Você pegou o colar, colocou a parte que fica sob a nuca da vítima,
empurrando esta parte para a frente [frente de você]. Em seguida, você
colocou a parte superior do colar abaixo do queixo, empurrando essa parte
para sua frente, depois você levantou a fixação que estava debaixo da
nuca, puxando a fixação na sua direção.
O colar que você colocou está bem colocado, mas você não sabe colocar um
colar cervical.
Na verdade, se nós viramos a vítima e a apresentamos a você com a cabeça
para a direita e você faz exatamente o mesmo gesto, o colar será
colocado... "de cabeça para baixo".
Porque quando a vítima está com a cabeça para a sua direita, você não deve
empurrar a fixação por baixo da nuca da vítima. É preciso enfiar a fixação
no outro sentido, ou seja, trazendo-a para você. Ou senão, colocar-se do
outro lado da vítima.
O colar sendo apresentado fechado, você não viu a sua assimetria, e não
teve o tempo da montagem para observar com um pouco mais de calma. Então
você simplesmente repetiu um gesto, sem entender que ele é bom em 50% dos
casos reais. Mas ele é correto em 100% dos casos de formação, porque a
formação mostrou apenas uma parte dos casos, e não todos.
O posicionamento do socorrista e as lindas calças brancas
No caso do vídeo dos "médicos Cubanos", o médico permanece de pé e atrás
da vítima. Ele recebe o colar fechado. Ou seja, todos os elementos para
que o posicionamento seja errado!
Para colocar corretamente um colar, é preciso que o socorrista
posicione-se ao lado da vítima, de joelhos. De joelho no chão? Com uma
linda calça branca de médico? Mais um elemento que não favorece a posição.
Quando você está vestido de branco, você não deita no chão, não se
ajoelha: você fica em pé, para se manter limpo. E neste caso, você fica
numa posição que aumenta o risco de colocar mal o colar.
Sapadores-Bombeiros
Nas corporações de Sapadores-Bombeiros, tentamos acertar todos esses
detalhes, um por um.
- O uniforme é reforçado nos joelhos. Não há desculpa
para evitar trabalhar na posição correta.
- Os colares são arrumados desmontados, numa sacola
fechada. Aumento da higiene, facilidade de transporte, necessidade de
medir para escolher o colar certo, montagem calma.
- Equipe de 4 socorristas na ambulância. Então, há um
socorrista para a cabeça, que só faz isso: segurar a cabeça, o que deixa
um pouco mais de tempo para fazer tudo o que é necessário.
- Aprendizagem de vários métodos para segurar a
cabeça, permitindo não atrapalhar a colocação do colar.
- O socorrista que coloca o colar frequentemente é
ajudado por um outro socorrista, que afasta as roupas da vítima para uma
melhor fixação.
- Competências equivalentes de todos os membros da
equipe. Não há "o médico que sabe", ou seja, alguém a quem os outros
teriam um pouco de medo de dizer "você colocou o colar invertido".
Todas as formações dos Sapadores-Bombeiros são feitas em turmas bem
pequenas (6 a 8 alunos) e grande número de formadores (2 a 4 por grupo de
alunos). A colocação do colar é dividida em duas sequências: uma que
explica a medida, a montagem e a escolha do sentido, a segunda sequência
que explica a colocação. Cada aluno realiza cada exercício várias vezes,
com os formadores cuidando de mudar a posição das vítimas, evitando assim
o gesto automático de colocação, automatismo cujo resultado os vídeos
mostram bem.
Conclusão
Se colocar um colar cervical parece fácil, a realidade mostra que o
sucesso depende de vários pequenos detalhes. Os formadores nos
Sapadores-Bombeiros, com formação em pedagogia, conhecem os possíveis
problemas de uma demonstração aparentemente simples.
Ainda mais sabendo que posicionar uma vítima numa prancha não é, no
conjunto, mais difícil do que colocar um colar cervical, podemos
questionar a qualidade geral do socorro e o nível de formação: Se todo
mundo acha que consegue colocar um colar, e também que consegue colocar a
vítima na prancha, transportá-la, fazer massagem cardíaca, etc... mas se a
formação relativa ao simples colar cervical não é adequada (o que
constatamos assistindo os vídeos...) por que a formação seria boa no
restante? Temos certeza da qualidade das aulas? Não seria uma qualidade
ilusória?
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