Este segundo artigo da série sobre os serviços de emergência tem como tema o "número de acidentes". Neste texto usamos acidente como sinônimo de “sinistro”, palavra menos conhecida, que significa incêndios, emergências médicas e acidentes propriamente ditos, ou seja, os acidentes que em geral exigem intervenção de um serviço de socorro. Cada prefeito deve ser capaz de calcular facilmente o número potencial de acidentes em sua cidade. Atualmente esse cálculo é muito aleatório, não permitindo que se façam previsões nem planejamento. Comparando, é como se a prefeitura esperasse o hospital estar saturado, e só então entrasse em pânico e fosse buscar recursos para expandi-lo. Mas como a administração pública é uma máquina lenta, quando os recursos forem liberados e o hospital for aumentado, os dados já serão diferentes. Fica claro que, se o serviço público não for capaz de prever, estará constantemente atrasado em relação à realidade.
Todos os projetos, sejam quais forem, exigem uma análise prévia, a fim de definir as necessidades futuras e os meios necessários para satisfazê-las. Uma definição deficiente das necessidades leva ou à implementação de meios superdimensionados a custo excessivo, ou a um subdimensionamento que irá impedir o sucesso do projeto.
No caso da implementação de serviço de socorro numa cidade, a análise preliminar terá que se concentrar no número de acidentes que o serviço deve gerenciar.
Se não há acidentes, não há necessidade de socorro. E se há acidentes, o dimensionamento do serviço criado deve ser relativo a esse número.
O Restaurante
Um serviço de socorro cuida dos acidentes assim como um restaurante serve refeições aos clientes. Em ambos os casos, existe prestação de serviços. Como todas as cidades do Brasil têm restaurantes, mas nem todas têm serviços de emergência, tomaremos por exemplo um restaurante, mais fácil de entender.
Então você vai abrir um restaurante depois de analisar a situação. Mas sem uma metodologia, você olha as ruas, o movimento das pessoas…e deduz um potencial de 50 refeições por dia. Você abre seu restaurante com base neste número: Tamanho do salão e dos refrigeradores, quantidade de copos, pratos, estoque de carne, legumes, número de funcionários... Depois de um mês, analisa os resultados, que só podem ser os seguintes: ou você não chegou a 50 refeições por dia e, neste caso, você vai anunciar para tentar alcançá-los, ou você vai chegar a 50 refeições por dia e ficar muito satisfeito.
Mas, logicamente, você nunca vai chegar a 80 refeições por dia, porque quando o restaurante está cheio, ninguém entra. Ou seja, você, o dono do restaurante planejado para 50 clientes e que consegue ter 50 clientes não deve acreditar que esteja alimentando toda a sua clientela potencial. Porque se com 50 lugares você atende 50 clientes, é porque o número de clientes potenciais é maior. Na verdade 50 não é o número de clientes na cidade, mas sim o número máximo que o restaurante consegue atender.
Alguns meses depois, você pode ver outro restaurante abrindo na frente do seu, com 100 lugares. Se acredita que seus 50 clientes são 100% dos clientes potenciais da cidade, você vai rir desse concorrente. E é quando você constatar este outro restaurante cheio que você vai perceber o seu erro: você tem 50 clientes, mas não tem todos os clientes. A prova: há 50 em seu restaurante e 100 ao mesmo tempo no concorrente. Isso quer dizer que há 150 clientes na cidade? Não! De jeito nenhum! Se o seu restaurante está cheio e o do seu concorrente também, é que vocês atendem 150 clientes, mas que há certamente ainda mais...
Mas se houver um lugar livre em um dos dois restaurantes você então saberá qual o número total de clientes potenciais:…149!
Ou seja, pode haver uma grande diferença entre o número de clientes atendidos e o número de clientes potenciais.
Os serviços de socorro
Para o socorro, o problema é o mesmo: existe uma diferença entre o número de acidentes e o número de intervenções.
No entanto, quando se pensa no número de acidentes, em geral a resposta obtida não é o número de acidentes, mas o número de intervenções.
A situação é, portanto, paradoxal: como não tenho um serviço de socorro, não tenho intervenções, e como confundo número de acidentes com número de intervenções, penso que na minha cidade não há acidentes e não vejo qualquer interesse em ter um serviço de socorro…Este é o primeiro caso. A vítima é transportada diretamente para o hospital, o animal caído em buraco fica lá até morrer, o incêndio na casa do José se apaga por "fim do combustível", o acidente passa despercebido.
No caso de haver um serviço de socorro, ele deve ser bem dimensionado. Caso contrário, ele acaba na mesma situação que o restaurante com suas 50 refeições: Restaurante muito pequeno, mas que se acha grande o suficiente.
Um serviço de socorro de baixa qualidade, com pouco pessoal, mal equipado, vai gerenciar apenas um pequeno número de intervenções, com atrasos muito longos. No entanto, tal como os clientes não entram no restaurante quando está cheio ou se a comida é ruim, a população "protegida" por um serviço de baixa qualidade não chama o socorro. Então o serviço existe, mas para a maioria das situações é como se não existisse: A vítima será transportada diretamente para o hospital, o acidente passará despercebido, etc.
Mas o serviço de socorro, seja qual for a sua dimensão, estará sempre convencido de que lida com 100% dos acidentes, quando isso nunca acontece.
Por isso o dimensionamento do serviço, o recrutamento, o financiamento, a ajuda das empresas e dos poderes públicos não podem, de modo algum, basear-se no número de intervenções. É o mesmo que vale para o Restaurante: se o empresário acredita que seus clientes representam 100% do potencial, ele não vai procurar expandir o restaurante. Para medir o número de "potenciais" clientes e, no caso de um serviço de resgate, o número de acidentes, é necessário, portanto, basear-se não no número de intervenções já realizadas, ou no número da cidade vizinha.
Mas então, como fazer o dimensionamento?
Número de intervenções e de acidentes
Vamos distinguir três casos.
1-não há nenhum serviço de socorro: haverá acidentes, incêndios, etc. mas 0 (zero) intervenções. É o caso da maioria do território brasileiro, em que quase 80% dos municípios não estão protegidos.
2-serviço de emergência ineficiente. As razões da ineficiência não importam, o resultado é o mesmo: há intervenções em número inferior ao de acidentes.
3 - serviço muito eficiente que, por conseguinte, realiza um grande número de intervenções. Mesmo que este número seja necessariamente inferior ao dos acidentes, está muito próximo dele.
Dois detalhes:
A-quando não há serviço de emergência, na maioria das vezes o restante dos serviços públicos também têm deficiências: calçadas e vias em más condições, pouco policiamento e iluminação de rua, etc... Pense: à noite, sem iluminação, numa estrada cheia de buracos, a probabilidade de ter um acidente é maior do que se ela está em perfeitas condições e bem iluminada. Veja o nosso artigo anterior e o nosso bom amigo José...
Há, portanto, proporcionalmente mais acidentes quando não há serviço de socorro. Não devido a essa ausência de serviço, mas porque ela reflete todo o problema geral de serviço público ofertado à população. Por essa relação, é possível dizer que quando o serviço de socorro existe, mas é deficiente, há um pouco menos de acidentes do que se não houvesse serviço de socorro; e quando o serviço é bom, geralmente é porque a sociedade é bem organizada e, portanto, produz um menor número de acidentes.
B-uma análise do número de intervenções em países "bem organizados" mostra que a proporção entre população e intervenções é sempre a mesma. Quer o setor seja urbano, rural, fortemente povoado ou não, na verdade não muda muito.
Como calcular?
A solução é tomar uma cidade localizada em um país onde os serviços de emergência são eficazes e observar quantas intervenções há porque, neste caso, como o país está bem protegido, o número de intervenções vai estar próximo do número real de acidentes. Como a proporção entre o número de habitantes e de acidentes é sempre aproximadamente a mesma, basta aplicar esta proporção à população de sua cidade para saber quantos acidentes aconteceram de verdade.
Se temos um serviço de socorro e este executa, proporcionalmente, menos intervenção do que o resultado deste cálculo, é porque o serviço é pouco eficaz: a população gosta dos bombeiros, dá curtidas nas páginas das redes sociais, mas quando há um acidente, não telefona, porque se for esperar 2 horas e ver a equipe chegar e não fazer nada, pode muito bem levar a vítima diretamente para o hospital, tentar apagar o fogo com mangueira de jardim, etc.
E uma vez que a proporção de acidentes em relação à população é aproximadamente a mesma, independentemente do país, se um serviço de socorro brasileiro faz metade do número de intervenções que um serviço alemão, não é porque ele está no Brasil: é porque as pessoas não chamam, e não chamam porque ele leva muito tempo para vir.
Para estimar o número de acidentes, vamos utilizar dados de países bem protegidos. Começando com 3 cidades francesas: Paris, Evron e Soulgé.
Paris, bem conhecida com cerca de 7 milhões de habitantes. A BSPP (Brigada dos Sapadores-Bombeiros de Paris) realiza 500.000 intervenções anuais. Uma proporção de cerca de 72 intervenções por 1000 habitantes por ano.
Os Sapadores-Bombeiros da cidade de Evron, no oeste da França, protegem 9.000 habitantes. São 49 Sapadores-Bombeiros (todos voluntários genuínos, portanto não são funcionários do serviço) e realizam cerca de 740 intervenções por ano. 82 intervenções por ano por 1000 habitantes.
O corpo de Sapadores-Bombeiros de Soulgé, pequena cidade do oeste do país, fazia até poucos anos atrás cerca de 90 intervenções por ano, para uma população de 1000 pessoas (a base foi fechada e agrupada com outra, mas as proporções permanecem as mesmas.)
Na Bélgica, os valores são semelhantes: a estação de socorro de Arlon protege 47.000 pessoas e realiza 3.300 intervenções por ano, uma proporção de cerca de 70 por ano por 1.000 habitantes. A estação de Athus protege 23.850 pessoas e faz 1.800 intervenções por ano, uma proporção de 75 por ano por 1.000 habitantes.
Podemos encher dezenas e dezenas de páginas, não muda nada: as proporções permanecem nesse patamar, independentemente do país. Também se nota que o número de intervenções é proporcionalmente um pouco maior quando a população é pequena.
A taxa mais baixa é de 70 por 1000 e a mais alta é de cerca de 90 por mil habitantes.
Nota: aqui comparamos sistemas de socorro semelhantes. Nos EUA, por exemplo, os serviços de socorro geralmente não têm ambulância. Por isso os dados daquele país são mais difíceis de utilizar-se para estas comparações.
Se olharmos para a situação brasileira em algumas cidades, vemos valores idênticos. Por exemplo, os Bombeiros Voluntários de Marau, no Rio Grande do Sul, protegem sua cidade de 44.000 habitantes com 2 quartéis e realizam cerca de 4.000 intervenções por ano. Uma proporção de 90 intervenções por 1000 habitantes/ano. Considerando que eles também fazem o transporte simples, o que não é o caso na Europa, podemos dizer que o número de intervenções de emergência em Marau-RS é um pouco menor e, provavelmente, o mesmo que em Alron, na Bélgica, ou seja, de 70 a 75 por ano.
Podemos até fazer o cálculo com um serviço de socorro ainda em implantação, como é o caso do Corpo de Sapadores-Bombeiros no município de Casca-RS. Ao longo de um ano, a equipe realizou cerca de 80 intervenções. No entanto, esta equipe visitou, para se apresentar, apenas 10% da população da cidade, que tem um total de 10.000 habitantes. Por conseguinte, só há 1000 pessoas realmente conscientes da existência do serviço, que, como era de se esperar, realiza 80 intervenções por 1000 por ano.
Seja qual for o país, seja qual for o tamanho da cidade, seja o setor muito urbanizado ou rural, encontramos sempre os mesmos valores que variam de 70 a 90 acidentes por ano por 1000 habitantes.
E na minha cidade?
Sabendo que o número de acidentes numa cidade oscila entre 70 a 90 por ano, por 1000 habitantes, o cálculo é rápido: em uma cidade de 2500 habitantes, ocorrem entre 175 e 225 acidentes por ano, em uma cidade de 10.000 habitantes ocorrem entre 700 e 900 acidentes.
O limite mais baixo é, portanto, de 70 por ano por 1000 habitantes e o limite mais elevado é de 90 por ano por 1000 habitantes. A variação pode ser explicada pela localização (município atravessado por uma estrada com tráfego elevado), pela infra-estrutura (iluminação pública de boa ou má qualidade) , pela pirâmide etária, industrialização, etc... Mas, em todos os casos, estas variações vão-se situar entre os 2 limites (70 e 90).
Mas ao longo do ano, pode também haver variações: em caso de seca aumenta o número de incêndios florestais; com chuva ou nevoeiro, aumenta o número de acidentes de trânsito, etc... Um serviço dimensionado para a menor proporção (portanto, 70 acidentes por 1000 habitantes/ano) não será eficaz o tempo todo.
E ser ineficaz, mesmo por algum tempo, pode levar a diminuição geral do número de intervenções, pelo declínio da confiança do público. Por isso é necessário dimensionar o serviço pelo maior valor. Idealmente para um valor ligeiramente mais elevado, por exemplo, 100 acidentes por ano por 1000 habitantes, para assumir os possíveis "picos".
Note-se que no Brasil este dimensionamento em 100 é uma quase-obrigação. Nosso país é enorme, e o número de serviços de socorro é muito pequeno. O conceito de apoio mútuo, amplamente utilizado na Europa, aqui é difícil de conceber. Esse apoio consiste em ter quartéis próximos um do outro, e assim quando um está ocupado, o outro atende em tempo e qualidade satisfatórios. E quando há uma intervenção maior, vários quartéis intervêm juntos. Na França há quartéis a cada 10 a 15 km. Um quartel pode, portanto, facilmente chamar os quartéis próximos como reforço, enquanto aqui, isso raramente é possível. Os reforços vindo de muito longe chegam após o colapso da casa incendiada, ou a morte das vítimas...
Dimensionamento e financiamento
Um município que não tenha um serviço de socorro pode facilmente tomar este valor de 100 por 1000, a fim de ter uma idéia do problema a ser resolvido. Como resolvê-lo será o tema de outros artigos, mas fique tranquilo: todos os países da Europa estão devidamente protegidos (em todo o caso, muito melhor do que o nosso país), com orçamentos de socorro muitas vezes inferiores aos do Brasil!
Quanto aos municípios que já dispõem de serviços de socorro, é necessária uma análise. De fato, como se vê no primeiro artigo desta série, o dinheiro gasto por um nível do Estado (Federal, Estadual ou Municipal) obviamente já não está disponível para os outros níveis.
O fato de os salários serem pagos no nível estadual, por exemplo, significa que o dinheiro proveniente desses salários já não pode ser utilizado noutros locais. Então, vamos verificar se o município protegido por um serviço estadual teria condições de mantê-lo apenas com a fatia de seus próprios impostos estaduais…a resposta geralmente é não. E nesse caso, há injustiça. Todos os municípios pagam impostos, então também merecem ser protegidos.
Além do custo, a outra análise é o número de intervenções. Em uma cidade de 20.000 habitantes, o número mínimo de intervenções é de 70 por 1.000 habitantes ou 1.400 por ano. Se a unidade de socorro realiza menos intervenção do que isso, é porque a população não chama o socorro porque ele não é "bom o suficiente". A armadilha é a mesma que a do restaurante com seus 50 clientes: o serviço de uma cidade de 20.000 habitantes, que executa apenas 280 intervenções por ano, está convencido de que atende 100% das intervenções, quando de fato gerencia menos de 20%.
Uma sugestão: Vá conhecer o serviço de socorro que atende sua cidade. Calcule o número de acidentes que acontecem por ano no território que ele diz atender, e pergunte ao comandante do serviço de socorro quantas intervenções ele faz, o número de assalariados, e o orçamento total do serviço. Leve um contador, a menos que ele seja cardíaco. Pois muitas vezes você vai perceber que o custo é exorbitante para um resultado que não é particularmente bom...
Se o serviço de socorro atende apenas 20% dos acidentes, é quase certo que o comandante vai tentar justificar isso alegando "falta de pessoal". Mas se você precisar de mais pessoal significa mais gastos, e portanto menos dinheiro disponível para outras áreas.
Conclusão
Vimos, no primeiro artigo, que os acidentes podem ter um impacto econômico dramático. Neste segundo artigo aprendemos a estimar o número destes acidentes. Então, estamos começando a ver a dimensão do problema.
No terceiro artigo, analisaremos a proteção de um território de acordo com o seu tamanho. Veremos que em muitos municípios brasileiros, a proteção correta envolverá necessariamente o estabelecimento não de um, mas de 2, 3 ou 4 serviços de socorro. |